Agricultura familiar ganha força no Distrito Federal
Agricultura familiar ganha força no Distrito Federal
Emater atende a 10 mil pequenos produtores espalhados em todo o território da capital. Especialistas defendem esse modelo por proteger o meio ambiente e reduzir a insegurança alimentar, porém cobram mais investimentos
No sítio Alegria, em Brazlândia, cada passo dado era uma oportunidade de encontrar diferentes árvores, frutas e hortas. Em apenas 800 metros de caminhada, a reportagem identificou plantações de café, limão, couve, açaí, mexerica, berinjela, alface, entre outras. Isso tudo dentro de uma floresta desenvolvida ao longo de 40 anos. "Quando cheguei aqui, em 1984, não tinha vegetação alguma. Era uma carvoaria. Hoje, o que produzimos é nosso alimento e nossa renda", disse o agrônomo Jorge Artur Fontes Chagas, 69 anos, que cuida do espaço ao lado das cinco filhas, por meio da agricultura familiar e da agroecologia.
Segmento social e produtivo, a agricultura familiar é um um importante instrumento de preservação do meio ambiente e de garantia da segurança alimentar no Brasil, empregando cerca de 10 milhões de trabalhadores. No Distrito Federal, são quase 10 mil produtores familiares atendidos pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do DF (Emater), 41% do total. Caracterizada pela diversidade produtiva e pela comercialização direta com os consumidores, a modalidade garante o abastecimento interno de alimentos. E o melhor: sem agrotóxicos.
A Lei nº 11.326, aprovada em 2006, estabelece diretrizes para o desenvolvimento da agricultura familiar. Para ser considerado agricultor deste segmento, é preciso: dirigir seu estabelecimento ou empreendimento com sua família, de forma que este núcleo contemple a principal mão de obra das atividades executadas; ter a maior parte da renda originada dessa modalidade; e não possuir área maior do que quatro módulos fiscais. No DF, um módulo possui cinco hectares, portanto, a área máxima é de 20 hectares.
Sustentabilidade
Segundo Sérgio Sauer, professor da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador de temas agrários e da agricultura familiar, o DF possui terras propícias para policultivos e se destaca pela alta demanda de alimentos saudáveis, inclusive, com a existência de diferentes feiras orgânicas e agroecológicas, isto é, com produtos livres de agrotóxicos e cujos sistemas se adaptam às condições locais de solo e de clima.
"As práticas familiares são mais sustentáveis, pois atendem a um requisito básico que é o respeito à diversidade biológica. Isso é fundamental para a restauração ecológica. Um bom exemplo é o cultivo de agroflorestas, ou seja, atividades produtivas que combinam o cultivo de árvores e a produção de alimentos. É preciso criar e ampliar sistemas com base no que o Cerrado oferece", explicou.
Para o professor Mauro Del Grossi, especialista em desenvolvimento rural na UnB, a agricultura familiar tem papel fundamental na defesa e na recuperação do meio ambiente. "O segmento pode ser envolvido na proteção de mananciais de água e em reflorestamentos, com políticas públicas ambientais de apoio. O diferencial dessa modalidade é a disponibilidade de mão de obra para realizar atividades que exigem cuidados diários ou frequentes", afirmou.
As regiões administrativas no DF têm potencial na produção familiar, seja em números de agricultores, seja em alta produtividade. De acordo com a diretora-executiva da Emater-DF, Loiselene Trindade, Brazlândia e Planaltina são as localidades que mais se destacam nesses quesitos, considerando as plantações de morango, goiaba e hortaliças, por exemplo. "As demais regiões também merecem relevância, como Sobradinho, com a produção de café; e PAD-DF, com as culturas de uva", acrescentou.
Autossuficiência
A 55km do Plano Piloto, o sítio Alegria comercializa 60 produtos, que incluem frutas, hortaliças, vegetais e ovos. Jorge Artur, que é responsável pelo espaço, comentou que o foco do empreendimento não está nas grandes extensões de terras destinadas a cada cultivo, mas, sim, na pluralidade de ofertas. "Partimos da seguinte premissa: como produzir alimentos em sintonia com o ambiente? Um dos pontos fundamentais é a diversificação, respeitando a sazonalidade da produção".
O inverno, por exemplo, é ideal para cultivar hortaliças — couve, brócolis, alface — que, segundo o agrônomo, têm origem em lugares mais frios. Nas estações quentes e úmidas, prioriza-se as culturas de frutas tropicais, tubérculos e legumes, como abobrinha, berinjela, pepino, abóbora, chuchu e pimentão. No sítio, os trabalhos vão desde a produção de insumos até a comercialização. O reaproveitamento de água e a reutilização de capim, madeiras e estercos fazem parte da rotina.
As vendas ocorrem de forma direta, em feiras, às quartas e aos sábados, na 315 Norte; e em sistemas de entrega a domicílios, às quartas. O retorno financeiro, de acordo com Jorge, tem sido estável nos últimos anos. "Antes, se questionava muito o preço dos produtos orgânicos, mais altos que aqueles disponíveis nos mercados. Agora, com a maior oferta, os valores se equilibram, estão mais acessíveis. Nos satisfaz ter a certeza de que nossos consumidores se preocupam com a saúde e a sustentabilidade", destacou.
O agrônomo, que também é ambientalista, chegou em Brasília em 1975. Do pai, que trabalhou no ramo da agricultura, pegou o gosto pela terra e o apego pela natureza. "Quando saí da faculdade, porém, estava afinado com os saberes sobre monocultura de soja, adubo químico, veneno e trator", contou, aos risos. "Poucos professores tinham uma visão mais crítica com relação ao agronegócio. Me juntando a movimentos mais alternativos, conheci a agroecologia, que tem uma proposta bastante diferente", explicou.
O ambientalista mora no sítio com as cinco filhas, responsáveis pela divulgação, comercialização, organização das cestas e demais atividades. Margarida Oliveira, 41, fica por conta da gestão do empreendimento.
Silvia, agricultora familiar, pretende expandir as plantações e participar de mais feiras(foto: Arquivo pessoal)
Segurança alimentar
Além de ser aliada da sustentabilidade, a agricultura familiar cumpre papel fundamental no combate à insegurança alimentar. "Dados mais recentes do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2017, mostram que esse segmento representa 77% de todos os estabelecimentos rurais e produz em torno de 70% dos alimentos consumidos no Brasil", reforçou o professor Sérgio Sauer. Outro ponto positivo está na produção de alimentos mais saudáveis. "Afinal, não basta ter acesso. É preciso que essa alimentação tenha qualidade e seja saudável", completou.
O DF, por ser um território pequeno, tem maior proximidade entre a produção familiar de alimentos e as pessoas que os demandam, reduzindo a distância entre os cultivos e o consumo. Números da Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (Seagri) evidenciam, por exemplo, que 87% da produção de mandioca é de responsabilidade da agricultura familiar. Entre dezembro de 2023 e maio de 2024, a comercialização do tubérculo foi de quase duas toneladas, nas Centrais de Abstecimento do DF (Ceasa). A tendência se repete no caso do leite, da banana e de diferentes grãos.
Na produção familiar de Silvia Rodrigues, 52, mandioca, açafrão, milho, caju e rapadura, além de fonte de renda, são itens sempre presentes na mesa. No Núcleo Rural São José, em Planaltina, os agricultores não trabalha com culturas extensas, mas, assim como Jorge, busca diversificar seus produtos. "Vendemos em feiras e de porta em porta. A mandioca, o açafrão e a rapadura têm saída muito boa, acredito que por serem alimentos 'naturais'", contou. Em período de chuva, os cultivos de quiabo e de abóbora complementam o prato e o faturamento.
Silvia trabalha ao lado do marido e dos dois filhos no segmento. Por meio do apoio financeiro do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do governo federal, e de cursos e capacitações da Emater, ela tem aprendido a aperfeiçoar a produção, tendo até viajado para conhecer o trabalho de outros agricultores. O filho Gustavo, 17, faz o curso de técnico em agropecuária para contribuir nos cultivos da família. "A gente divide as tarefas. Meu esposo planta e fica responsável por fazer a rapadura. Meu filho o ajuda e eu deixo tudo no engradado. Nós todos vendemos", disse.
O apego com a terra é tradição familiar, visto que o pai de Silvia também era agricultor. “Desde pequena, eu prestava atenção no funcionamento dos cultivos. Gosto muito de viver e trabalhar na roça. Não troco por nenhum outro lugar”, garantiu. “Certa vez, um amigo contou que desistiu do ramo, porque sua terra ‘não prestava’. Eu rebati dizendo ‘não existe terra que não presta. Basta entender o que ela pode nos oferecer’”. Atualmente, a maior dificuldade está na falta de água para as produções, uma vez que não podem usar água tratada para este fim. Agora, o objetivo é investir na criação de abelhas sem ferrão para o cultivo de mel.
Desafios
Um grande desafio está no acesso à terra. "O DF conta com milhares de famílias sem terra, portanto, é fundamental implementar a política fundiária com a criação de assentamentos, fornecendo acesso e trabalho aos agricultores familiares", frisou Sérgio Sauer. Por fim, reverter a exclusão e o não acesso à tecnologias, como energia elétrica, máquinas, infraestrutura e técnicas de armazenagem, também é um obstáculo. O professor Mauro Del Grossi lembra que o GDF conta com políticas importantes para o segmento. Um exemplo é o Programa de Aquisição da Produção da Agricultura (PAPA/DF), que viabiliza a compra direta de alimentos e produtos artesanais de agricultores familiares pelo governo.
Loiselene Trindade, diretora-executiva da Emater/DF, destacou que a agricultura familiar passa por um momento de mudança em relação à participação dos jovens, trazendo uma preocupação sobre a sucessão familiar e a questão da mão de obra. "Isso traz preocupações para o desenvolvimento da economia agrícola da região do DF. A redução da mão de obra impacta diretamente na agricultura familiar, que depende dela", comentou.